Pesquisadores do Instituto Butantan descobrem que o veneno da cascavel tem poder analgésico 600 vezes mais forte que a morfina, veja a reportagem da Revista FAPESP da edição 100 de junho de 2004
Fábrica de moléculas
Parceria entre o Centro de Toxinologia Aplicada e indústria farmacêutica resulta em analgésico mais potente que morfina
Parceria entre o Centro de Toxinologia Aplicada e indústria farmacêutica resulta em analgésico mais potente que morfina
Novos princípios ativos, descobertos por um grupo de pesquisa paulista, mostraram grande potencial farmacológico para amenizar a dor e controlar a pressão arterial, como apontam testes feitos com moléculas sintetizadas a partir do veneno da cascavel (Crotalus terrificus) e da jararaca (Bothrops jararaca). Outras moléculas puras extraídas de esponja-do-mar são capazes de reduzir tumores, mas não podem ainda ser reveladas porque estão numa fase da pesquisa que exige sigilo.
Desde sua criação, o Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), com sede no Instituto Butantan, já depositou seis pedidos de patente. O mais novo trata de uma substância obtida do veneno da cascavel, que revelou, em uma única dose, um poder de analgesia 600 vezes mais potente que o da morfina, efeito que se prolonga por até cinco dias sem efeitos colaterais.
A primeira patente, depositada em março de 2001, derivou do estudo não só do veneno da jararaca como do cérebro dessa serpente, onde foram encontrados 17 peptídeos, resultantes de uma cadeia de aminoácidos, com propriedades anti-hipertensivas batizados de Evasins (endogenous vasopeptidase inhibitor). As pesquisas foram realizadas em parceria com a indústria farmacêutica nacional, representada pelo Consórcio Farmacêutico (Coinfar), constituído pelos Laboratórios Biolab-Sanus, União Química e Biosintética.
Os estudos que resultaram no isolamento das moléculas responsáveis pela analgesia percorreram um longo caminho. Vital Brazil, fundador do Instituto Butantan, pioneiro no estudo das serpentes no Brasil e precursor brasileiro na aplicação médica das toxinas animais, mostrou o efeito analgésico do veneno da cascavel no começo do século 20.
O professor Antonio Carlos Martins de Camargo, coordenador do CAT, que é um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) criados pela FAPESP em 2000, lembra que o pesquisador utilizou em pacientes com dores crônicas o veneno da cascavel diluído, eficazmente. "O veneno utilizado era bastante diluído, quase homeopático, mas os pacientes se sentiam muito bem", relata.
Foi a partirdessas observações que pesquisadores do Butantan conseguiram fazer uma caracterização farmacológica da substância analgésica contida no veneno da cascavel, mas não o princípio ativo, ou seja, a molécula ou as moléculas responsáveis por esse efeito. Isso só se tornou possível, segundo Camargo, com a criação do CAT, que possibilitou a montagem da infra-estrutura necessária para o isolamento, a identificação química e a síntese da substância ativa.
Efeitos reproduzidos - Como essas moléculas são componentes minoritários no veneno, isolá-las e caracterizá-las é uma tarefa bastante complexa, que requer especialistas no assunto e instrumentos específicos, como o aparelho de espectrometria de massa, fundamental para determinar a estrutura molecular. "Depois de vários fracassos, conseguimos chegar a um bom final graças à atuação de pesquisadores do Instituto Butantan, como Yara Cury e sua pós-graduanda Gizele Picolo, e de um pesquisador japonês, Katsuhiro Konno, especialista em purificação que trabalhou conosco durante três anos como bolsista da FAPESP", conta Camargo. "No final do ano passado, conseguimos chegar a uma das moléculas responsáveis pelo efeito analgésico."
A molécula foi isolada, sua estrutura identificada e, em seguida, sintetizada. Testes comprovaram que a molécula sintética isolada reproduzia os efeitos analgésicos. "É um efeito semelhante ao da morfina, mas muito mais potente, duradouro e sem efeitos colaterais identificados até o momento. Além disso, o produto é administrado por via oral", ressalta. Já a morfina, que é o padrão de analgesia, atua por um período de tempo curto. Para se obter o mesmo efeito da primeira dose administrada é necessário aumentar a quantidade ingerida, o que resulta em um efeito cumulativo no organismo e, em alguns casos, dependência. Os testes com o novo analgésico foram conduzidos em animais e ainda têm que ser confirmados em seres humanos, os chamados ensaios clínicos da fase 3 e 4.
Já nos ensaios pré-clínicos realizados com os anti-hipertensivos obtidos a partir do veneno da jararaca novas propriedades, que não constam da primeira patente, foram descobertas e patenteadas. Testes realizados mostraram diferenças importantes entre esses e os anti-hipertensivos dessa classe existentes no comércio. Essas diferenças poderão melhorar a qualidade do tratamento de indivíduos hipertensos.
Muitas vezes descobre-se ainda outra atividade dessas moléculas não relacionada com aquela que foi primeiro identificada. É o caso de um dos Evasins que influencia a permeabilidade de um canal iônico e modifica a resposta aos estímulos, como ocorre, por exemplo, no estímulo que leva à contração muscular. Essa propriedade poderá ter outra aplicação terapêutica além da atividade anti-hipertensiva, como no tratamento de doenças que afetam o sistema nervoso central. As novas descobertas e também os caminhos percorridos pela molécula sintetizada dentro do organismo resultaram em duas outras patentes, depositadas no Brasil, nos Estados Unidos, na Comunidade Européia e no Japão.
Na atual fase da pesquisa, os melhores Evasins, que têm maior eficácia e menores efeitos colaterais, estão sendo escolhidos para desenvolver os anti-hipertensivos. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tem trabalhado em duas vertentes. Uma delas trata da busca de formulações capazes de tornar eficaz sua administração por via oral, já que os peptídeos são destruídos pelo aparelho digestivo. A outra avalia a ação anti-hipertensiva de quatro dos 17 novos peptídeos encontrados no veneno da jararaca. Ratos transgênicos com hipertensão criados em laboratório recebem dosagensdecada um deles e são monitorados em tempo integral.
Resultados promissores - Os resultados obtidos até agora, tanto com o analgésico como com o anti-hipertensivo, têm sido muito promissores, conforme atestam os parceiros da indústria. "Fomos muito além do que imaginávamos no início", diz Cleiton de Castro Marques, vice-presidente do Grupo Castro Marques, que agrupa as empresas Biolab-Sanus e União Química, duas das participantes do consórcio. O começo dessa parceria teve início com uma conversa entre o professor Camargo e o médico Márcio Falci, diretor médico da Biosintética, a outra ponta do Coinfar.
"Quando ele me falou sobre o tipo de projeto que estava desenvolvendo, vislumbrei a possibilidade de ter em um único local no Brasil a descoberta de novos produtos de modo intenso e rápido", relata Falci. Esse foi o início da parceria entre a indústria farmacêutica e o CAT. "Percebemos a possibilidade de ter uma base para desenvolver uma linha de produtos farmacêuticos que eventualmente poderiam chegar ao mercado", relata José Fernando Leme Magalhães, diretor corporativo de Assuntos Estratégicos do Grupo Castro Marques.
O consórcio foi formado porque seria mais difícil para cada uma das empresas individualmente ter fôlego para acompanhar os desdobramentos do projeto. Dentro desse cenário, os empresários começaram a olhar com mais atenção aos detalhes dos produtos em transformação. Até agora, cada uma das três empresas que compõem o consórcio já colocou US$ 1 milhão de recursos próprios na pesquisa, totalizando US$ 3 milhões. Mas daqui para a frente os gastos serão maiores, com a certificação dos testes e a montagem do dossiê que será encaminhado às agências regulatórias brasileiras e internacionais para aprovação do produto.
Essa forma de trabalho e novos investimentos também devem servir a uma das novidades mais recentes saídas das bancadas do CAT e apoiadas pelo Coinfar. O produto, cujos resultados preliminares são animadores, tem propriedades anticancerígenas e é obtido de uma esponja-do-mar. "Os testes com a molécula pura causaram redução extremamente significativa em alguns tipos de tumores", relata Camargo.
A esponja é um animal invertebrado muito simples que vive grudado nas pedras e outros organismos marinhos. Para se alimentar e crescer, ela produz toxinas que afugentam os predadores do lugar onde habita. Sabendo disso, os pesquisadores foram atrás dessas toxinas para buscar possíveis aplicações para elas. Essa molécula foi isolada e sua estrutura determinada pela espectrometria de massa. O próximo passo é obtê-la na forma sintética. Os estudos são parte de um programa do CAT de desenvolvimento de toxinas de animais marinhos, com aplicação em muitas áreas.
"Só para citar um exemplo, o AZT, antiviral usado no tratamento da Aids, foi produzido a partir da toxina de uma esponja-do-mar", diz Camargo.Com esse amplo leque de pesquisa, o Centro de Toxinologia do Butantan é descrito como uma fábrica de moléculas por Castro Marques. Com as boas notícias do CAT, a Biolab e a União Química estão empenhadas em investir em pesquisa e desenvolvimento para melhorar sua competitividade.
Neste ano, o grupo destinou 5,3% do faturamento na área farmacêutica, que em 2003 foi de R$ 419 milhões, para pesquisa. Portanto, os aportes representarão cerca de R$ 22,2 milhões. O investimento contempla desde produtos inovadores até o desenvolvimento de novas formas farmacêuticas, novos conceitos e estudos clínicos.
A parceria das empresas com centros de pesquisa teve início há nove anos, com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), e resultou no Bandgel, um hidrogel para o tratamento de queimaduras. O produto age como barreira de proteção em relação ao meio ambiente, possibilitando a rápida recuperação tecidual do local da queimadura.
Filosofia empresarial - "Nós chegamos hoje num ponto em que temos recebido mais propostas do que nossa capacidade de investir", relata Castro Marques. Para ele, a pesquisa é de suma importância para a indústria nacional. Desde a entrada em vigor da Lei de Patentes no Brasil em 1996, as indústrias nacionais passaram a se preocupar com a necessidade de desenvolver novos produtos, como fazem as grandes empresas internacionais.
"Temos de investir e criar tecnologia, porque o mercado se constituirá de empresas inovadoras, de um lado, e de empresas fabricantes de genéricos, de similares e de produtos populares, de outro", diz. A mesma filosofia norteia a Biosintética, que desde 1993 trabalha em parceria com universidades para desenvolver produtos. Anualmente investe em pesquisa 2% do seu faturamento líquido de cerca de R$ 260 milhões, o que representa cerca de R$ 5,2 milhões.
Segundo Falci, da Biosintética, um dos resultados da parceria com o CAT, além dos promissores fármacos, foi o lançamento das bases para a definição de uma política industrial farmacêutica. O primeiro pilar foi a criação da Agência de Gestão da Inovação Farmacêutica (Agif), que reúne especialistas capazes de fazer uma patente bem protegida e tem como tarefa ajudar a identificar gargalos na rota de transformação da descoberta até o produto.
Para Magalhães, o objetivo da inovação é o mercado. E o sucesso é o maior estímulo. "Tenho certeza de que quando um desses produtos inovadores chegar ao mercado muitas outras empresas também vão querer investir." A capacidade de colocar no mercado um produto novo, de maior valor agregado e apelo comercial motiva a concorrência.
O Projeto
Centro de Toxinologia Aplicada (CAT)
Modalidade
Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids)
Coordenador
Antonio Carlos Martins de Camargo - Instituto Butantan
Investimento
US$ 1.300.000
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